
"É livre, ilimitado e, sobretudo, experimental". Dentro desta perspectiva, sobretudo na qualidade de experimental, "O sapato" vai a partir de agora abrir uma seção exclusiva para contos. A idéia inicial é a de publicar contos do próprio autor do blog. Apesar do primeiro post ter sido uma espécie de conto para explicar a criação do blog, o conto abaixo inaugura a "Seção: Contos...".
É importante destacar, a fim de se evitar o pânico geral, de que as intenções iniciais do blog serão mantidas. A nova seção será um acréscimo, uma nova possibilidade.
Mais uma noite

Sentou-se na mesa da cozinha, enquanto esperava o café estar pronto. Tinha consciência do mal que podia lhe fazer ingerir tanto café. Mas não conseguia evitar. O mal era feito a ele mesmo. Quem poderia se importar. Pegou a xícara azul e grande que gostava. Colocou mais da metade de leite e completou com o café. Alguma coisa o distraiu, um latido longínquo talvez, e fez com que ele derramasse boa parte do café sobre a mesa. Praguejou bastante por muito tempo. Odiava coisas sujas. Ainda mais se ele fosse o responsável pela sujeira. Alguém uma vez lhe dissera que isto era conseqüência de alguma frustração. Um problema interno mal resolvido. Todavia, o único problema interno que possuía era uma gastrite. A droga de uma gastrite que parecia estar regida pelo seu estado emocional. E ele nunca estava bem emocionalmente. Alguém lhe dissera também que ele não havia amadurecido. Que fossem, então, todos os conselheiros para o inferno. Ele não tinha amadurecido, mas não estava pedindo nada a ninguém. Não estava. Pegou uma toalha na gaveta e se pôs a limpar a mesa. Mas não adiantava. Puxou a toalha com tanta raiva, como se estivesse arrancando todos os seus problemas, como se extirpar-se tudo que lhe doía de uma só vez. O som da xícara ao chão, não lhe tirara a atenção. Ficou segurando o pano por algum tempo, refletindo. Perguntava-se constantemente quando tudo isto se iniciara. Por que ele não percebera. Por que ele não evitara. As lágrimas escorriam-lhe do rosto. Abandonou a cozinha. Abandonou tudo. Ligou o som e saiu. Trancou a porta. E saiu à deriva. Era um horário agradável. A maioria das pessoas já havia retornado do trabalho, já estavam em suas casas. O risco de vê-las era ínfimo.
Andou por quase uma hora, até chegar em uma praça que se acostumara a passar o tempo. Sentou-se e arrancou uma flor de uma planta qualquer. Passou a fitá-la e se permitiu divagar. Desta forma conseguia sair deste mundo. Ir para qualquer lugar, que não fosse ali. Qualquer lugar em que se sentisse a vontade. Um lugar onde pudesse se despir. Ficar completamente nu. A mente vazia. Uma folha em branco. Poderia reescrever sua vida, sua história. Só conheceria quem realmente valesse a pena. Iria a todos os lugares que desejasse. E nada o incomodaria. Nem a sua gastrite.

Uma criança maltrapilha o fez sair de seu momento reflexivo e voltar à tona. Pedia-lhe alguma coisa que ele não se esforçara em entender. Acenou com a cabeça e deu de costas, deixando a criança a ralhar sozinha. Pessoas inoportunas. Insensíveis. Não lhe respeitavam. Não o deixavam em paz. Queria que tudo implodisse.
Um comentário:
Adorei, mas o personagem (quem será ele?) está muito melancólico, triste e cheio de reflexões que, talvez - olha que eu disse o talvez -, pudesse ser resolvido em uma simples "balada" ou, quem sabe, com uma mudança de objetivos. Ou seja, mudança na área, amigo.
Bjsss.
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