quinta-feira, 24 de abril de 2008

Let me introduce the shoe again...


"É livre, ilimitado e, sobretudo, experimental". Dentro desta perspectiva, sobretudo na qualidade de experimental, "O sapato" vai a partir de agora abrir uma seção exclusiva para contos. A idéia inicial é a de publicar contos do próprio autor do blog. Apesar do primeiro post ter sido uma espécie de conto para explicar a criação do blog, o conto abaixo inaugura a "Seção: Contos...".
É importante destacar, a fim de se evitar o pânico geral, de que as intenções iniciais do blog serão mantidas. A nova seção será um acréscimo, uma nova possibilidade.


Mais uma noite
Era mais uma noite solitária que passaria. Mais uma noite em que sentiria o frio o dilacerar por dentro. Uma frieza emanada de recordações. Não conseguia compreender o porquê de a vida ser tão irônica. Tinha dificuldade de aceitar as coisas como elas eram ou como pareciam ser. Podia jurar que escutava esporadicamente a vida a rir sarcasticamente diante das suas frustrações e desilusões. Quando isto acontecia, encolhia-se, pressionando as orelhas com as palmas das mãos, para cessar o som das gargalhadas que ressaltavam suas derrotas. Queria extrair de sua memória tudo que não lhe agradasse. Somente se recordaria dos seus triunfos, de suas vitórias. Nada que lhe trouxesse a dor no peito que o fazia se sentir péssimo. Podia até se esconder das pessoas que o cercavam e daquelas que não conhecia também, e por vezes tentava pôr em prática este intuito. Fingir externamente era extremamente fácil para ele. Porém, nada poderia ser feito para se esconder da pessoa que o conhecia mais do que todos neste mundo. Era cúmplice de si mesmo. Tinha a impressão de que, ao olhar para qualquer objeto, não o fazia sozinho. Havia outra pessoa que somente ele conhecia. Alguém que estava ciente de todas as sensações que lhe ocorriam, provocadas pelas mais variadas situações de uma vida simples e banal. Acostumara-se com a monotonia das coisas. Na verdade, não enxergava mais nenhuma motivação nas coisas, no mundo, em nada. Praticamente desistira de viver. Fazia suas tarefas diárias, mas nem se dava conta das razões que o levava a fazê-las. Uma coisa que ainda não tinha perdido a vontade de fazer era caminhar. Mas quando se preparava para satisfazer uma de suas poucas vontades, desistia. Passara a detestar as pessoas, pelo menos a maioria delas. Gente mesquinha, vil, desprezível e repugnante. Por vezes tentava desvencilhar-se deste monstro que havia se tornado. Porém, malograva em cada uma das suas tentativas. Parecia não haver remédio para sua misantropia. Só de pensar que se depararia com pessoas tão insuportáveis, ele preferia ficar em sua casa. Escutando música. Isto sim era uma das poucas coisas que lhe restavam para desfrutar neste mundo sem significado.
Sentou-se na mesa da cozinha, enquanto esperava o café estar pronto. Tinha consciência do mal que podia lhe fazer ingerir tanto café. Mas não conseguia evitar. O mal era feito a ele mesmo. Quem poderia se importar. Pegou a xícara azul e grande que gostava. Colocou mais da metade de leite e completou com o café. Alguma coisa o distraiu, um latido longínquo talvez, e fez com que ele derramasse boa parte do café sobre a mesa. Praguejou bastante por muito tempo. Odiava coisas sujas. Ainda mais se ele fosse o responsável pela sujeira. Alguém uma vez lhe dissera que isto era conseqüência de alguma frustração. Um problema interno mal resolvido. Todavia, o único problema interno que possuía era uma gastrite. A droga de uma gastrite que parecia estar regida pelo seu estado emocional. E ele nunca estava bem emocionalmente. Alguém lhe dissera também que ele não havia amadurecido. Que fossem, então, todos os conselheiros para o inferno. Ele não tinha amadurecido, mas não estava pedindo nada a ninguém. Não estava. Pegou uma toalha na gaveta e se pôs a limpar a mesa. Mas não adiantava. Puxou a toalha com tanta raiva, como se estivesse arrancando todos os seus problemas, como se extirpar-se tudo que lhe doía de uma só vez. O som da xícara ao chão, não lhe tirara a atenção. Ficou segurando o pano por algum tempo, refletindo. Perguntava-se constantemente quando tudo isto se iniciara. Por que ele não percebera. Por que ele não evitara. As lágrimas escorriam-lhe do rosto. Abandonou a cozinha. Abandonou tudo. Ligou o som e saiu. Trancou a porta. E saiu à deriva. Era um horário agradável. A maioria das pessoas já havia retornado do trabalho, já estavam em suas casas. O risco de vê-las era ínfimo.
Andou por quase uma hora, até chegar em uma praça que se acostumara a passar o tempo. Sentou-se e arrancou uma flor de uma planta qualquer. Passou a fitá-la e se permitiu divagar. Desta forma conseguia sair deste mundo. Ir para qualquer lugar, que não fosse ali. Qualquer lugar em que se sentisse a vontade. Um lugar onde pudesse se despir. Ficar completamente nu. A mente vazia. Uma folha em branco. Poderia reescrever sua vida, sua história. Só conheceria quem realmente valesse a pena. Iria a todos os lugares que desejasse. E nada o incomodaria. Nem a sua gastrite.
Uma criança maltrapilha o fez sair de seu momento reflexivo e voltar à tona. Pedia-lhe alguma coisa que ele não se esforçara em entender. Acenou com a cabeça e deu de costas, deixando a criança a ralhar sozinha. Pessoas inoportunas. Insensíveis. Não lhe respeitavam. Não o deixavam em paz. Queria que tudo implodisse.

Um comentário:

Eu disse...

Adorei, mas o personagem (quem será ele?) está muito melancólico, triste e cheio de reflexões que, talvez - olha que eu disse o talvez -, pudesse ser resolvido em uma simples "balada" ou, quem sabe, com uma mudança de objetivos. Ou seja, mudança na área, amigo.

Bjsss.